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Luciano II Autor(es): Luciano de Samósata Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/9727 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0800-6 Accessed : 29-Jul-2020 17:10:12 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt Tradução do grego, introdução e notas Custódio Magueijo Luciano de Samósata Colecção Autores Gregos e Latinos Série Textos Luciano [II] IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS a trajectória de uma vida Amadurecido pelas viagens e pela expe riência da vida, materialmente afortunado, Luciano cedo se farta da actividade judiciá ria, da retórica e da sofística, para se entregar a uma actividade literária que, não sendo nova, ele, no entanto, reforma de maneira radical: tratase do diálogo filosófico, mas agora entendido e elaborado segundo prin cípios originais. De facto, Luciano aligeira substancialmente o majestoso diálogo filosó fico que vinha dos tempos de Platão e acres centalhe um aspecto dramático, orientado no sentido da sátira o que significa reunir no «novo género» dois géneros diferentes e até muito diversos: o diálogo filosófico e a comédia. Realmente, foram sobretudo as obras em forma de diálogo que deram fama a Luciano. É nelas que melhor se expande a sua crítica panfletária e corrosiva, que atin ge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os heróis, a religião e as religiões, a filosofia e as suas variadíssimas seitas, a moral convencional, a sociedade e os seus pilares mais destaca dos, os homens e as suas vaidades, as suas su perstições irracionais e o aproveitamento que delas fazem os espertos... enfim, podemos dizer que em Luciano conflui o que de mais violento havia na comédia. Um certo epicu rismo prático e um cinismo teórico afinam e refinam o processo. (Página deixada propositadamente em branco) (Página deixada propositadamente em branco) Luciano de Samósata Luciano [II] Tradução do grego, introdução e notas de Custódio Magueijo Título • Luciano [II] Tradução do Grego, Introdução e Notas • Custódio Magueijo Autor • Luciano de Samósata Série Monografias Coordenador Científico do plano de edição: Maria do Céu Filho Comissão Edtorial José Ribeiro Ferreira Maria de Fátima Silva Diretor Técnico: Delfim Leão Francisco de Oliveira Nair Castro Soares Edição Imprensa da Universidade de Coimbra URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc E-mail: imprensauc@ci.uc.pt Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt Coordenação editorial Imprensa da Universidade de Coimbra Concepção gráfica Imprensa da Universidade de Coimbra Infografia Mickael Silva Impressão e Acabamento www.artipol.net ISBN 978-989-26- 0799-3 ISBN Digital 978-989-26-0 800-6 Depósito Legal 353356/12 ª Edição: IUC • 2012 © Dezembro . Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt) Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edição electrónica, sem autorização expressa dos titulares dos direitos. É desde já excepcionada a utilização em circuitos académicos fechados para apoio a lec- cionação ou extensão cultural por via de e -learning Todos os volumes desta série são sujeitos a arbitr agem científica independente. Obr a realizada no âmbito das actividades da UI&D Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos DOI http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0800-6 Luciano de Samósata Luciano [II] Tradução do grego, introdução e notas de Custódio Magueijo (Página deixada propositadamente em branco) 7 S UMÁRIO INTRODUÇÃO GER AL ...........................................................................11 EU, LÚCIO – MEMÓRIAS DE UM BURRO ............................................17 Introdução .........................................................................................19 Tradução ........................................................................................... 23 UMA HISTÓRIA VERÍDICA ...................................................................61 Introdução ........................................................................................ 63 Tradução: Livro I ..............................................................................65 Livro II ............................................................................................... 87 O MENTIROSO OU O INCRÉDULO ...................................................109 Introdução ....................................................................................... 111 Tradução .......................................................................................... 115 [OS DOIS] AMORES ..............................................................................139 Introdução .......................................................................................141 Tradução ..........................................................................................143 A DANÇA ................................................................................................ 181 Introdução .......................................................................................185 Tradução .......................................................................................... 191 HERMOTIMO OU AS ESCOLAS FILOSÓFICAS ................................ 223 Introdução .......................................................................................225 Tradução ..........................................................................................231 Ficha Técnica: Autor: Luciano de Samósata Título: Luciano (II): – Eu, Lúcio – Memórias de um Burro – Uma História Verídica – O Mentiroso ou O Incrédulo – [Os Dois] Amores – A Dança –Hermotimo ou As Escolas Filosóficas Edição utilizada: A. M. Harmon, Lucian , The Loeb Classical Library: Greek authors, Harvard University Press, 1959-1961. Luciano [II] EU, LÚCIO – MEMÓRIAS DE UM BURRO UMA HISTÓRIA VERÍDICA O MENTIROSO OU O INCRÉDULO [OS DOIS] AMORES A DANÇA HERMOTIMO OU AS ESCOLAS FILOSÓFICAS (Página deixada propositadamente em branco) 11 I NTRODUÇÃO GER AL 1 Luciano nasceu em Samósata, capital do antigo reino de Comagena, situado a norte da Síria, na margem direita do Eufrates. Os primeiros imperadores romanos conservaram-lhe um certo grau de independência, mas acaba por ser incluído entre as províncias do Império Romano. Quanto a datas de nascimento e morte, aceitemos 125 -190 d. C. Seguramente, a vida literária de Luciano desenvolve-se na segunda metade do séc. II d. C., por um período de quarenta anos, durante o qual escreveu cerca de oitenta obras. No tocante a dados biográficos, temos de contentar-nos com as informações contidas no conjunto dos seus escritos. Pelo menos têm a vantagem de serem de primeira mão. E se a nossa curiosidade mais «superficial» gostaria de saber muitas outras coisas sobre a sua vida, a verdade é que o essencial do homem está nítida e magnificamente retratado na obra. De entre as obras mais importantes do ponto de vista autobiográfico, salienta-se a intitulada O Sonho (ou Vida de Luciano ). Imediatamente se conclui tratar-se dum trabalho da meia-idade, que mais abaixo resumimos. Após uma peregrinação de vários anos por terras da Grécia, da Itália e da Gália, onde conseguira assinalável êxito e não menos importante pecúlio, Luciano regressa (por volta de 162-163) à sua cidade natal, que o havia visto partir pobre e quase anónimo, e agora se orgulhava do prestígio que lhe era transmitido pelo próprio êxito dum filho seu. É então que Luciano, perante os seus concidadãos, traça uma retrospectiva autobiográfica, da qual mencionamos os passos mais salientes. Chegado ao termo da escolaridade elementar, adolescente de quinze anos, o pai aconselha-se com familiares e amigos sobre o futuro do moço. «A maioria opinou que a carreira das letras requeria muito esforço, longo tempo, razoável despesa e uma sorte brilhante. Ora, a nossa fortuna era limitada, pelo que, a breve trecho, precisaríamos de alguma ajuda. 1 Esta «Introdução geral» é, na verdade, reproduzida de outras que escrevi a propósito de diversas obras de Luciano. Não se pode exigir que, para cada uma das cerca de oitenta, tivesse de inventar uma biografia formalmente diferente de Luciano. No entanto, a parte final, relativa a cada obra em particular, é redigida especialmente para esta edição. 12 Se, pelo contrário, eu aprendesse um ofício, começaria imediatamente a retirar daí um ordenado mínimo, que me permitiria, naquela idade, deixar de ser um encargo familiar, e até mesmo, algum tempo depois, dar satisfação a meu pai com o dinheiro que traria para casa.» (§ 1) Restava escolher o ofício. Discutidas as várias opiniões, foi decidido entregar o rapaz aos cuidados dum tio materno, presente na reunião, e que era um excelente escultor. Além deste factor de ordem familiar, pesou ainda o facto de o moço, nos seus tempos livres, gostar de se entreter a modelar, em cera, bois, cavalos e figuras humanas, «tudo muito bem pare- cido, na opinião de meu pai» . Por essa actividade «plástica» (é palavra sua), que não raro o desviava dos deveres escolares, «chegava mesmo a apanhar pancada dos professores, mas isso agora transformava -se em elogio à minha vocação» . (§ 2) Chegado o grande dia, é com certa emoção que o jovem Luciano se dirige à oficina do tio, a fim de iniciar a sua nova vida. De resto, via no ofício de escultor uma espécie de brincadeira de certo modo agradável, e até uma forma de se distinguir perante os amigos, quando estes o vissem esculpir figuras de deuses e estatuetas. Todavia, e contrariamente às suas esperanças, o come- ço foi desastroso. O tio põe-lhe na mão um escopro e manda-o desbastar uma placa de mármore, a fim de adiantar trabalho ( «O começar é meio caminho andado» ). Ora... uma pancada um pouco mais forte, e eis que se quebra a placa... donde uma monumental sova de correia, que só a fuga consegue interromper. Corre para casa em tal estado, que a mãe não pode deixar de censurar asperamente a brutalidade do irmão. Entretanto, aproxima-se a noite, e o moço, ainda choroso, dolo- rido e revoltado, foi deitar-se. As fortes emoções do dia tiveram como resultado um sonho – donde o título da obra. (§§ 3 -4) Até aqui, Luciano fornece-nos dados objectivos, que nos permitem formar uma ideia suficientemente precisa sobre si próprio e sobre a situação e ambiente familiares. Quanto ao sonho, se nada nos permite duvidar da sua ocorrência, a ver- dade é que se trata, antes de mais, duma elaboração retórica, elemento tantas vezes utilizado na literatura, mas nem por isso menos significativo do ponto de vista autobiográfico. De facto, Luciano serve-se deste processo para revelar aos seus ouvintes não tanto o que se terá passado nessa noite, mas principal- mente a volta que a vida dera, a partir duma situação que, em princípio, teria uma sequência bem diferente. 13 Assim, e com uma nitidez – segundo afirma – «em nada diferente da realidade» , aparecem -lhe duas mulheres, que, energicamente e até com grande violência, disputam a posse do moço, que passa duma para a outra, e volta à primeira... enfim, «pouco faltou para que me despedaçassem» Uma delas era a Escultura ( Hermoglyphikê ), «com o (típico) aspecto de operário, viril, de cabeleira sórdida, mãos cheias de calos, manto subido e coberto de pó, como meu tio quando estava a polir as pedras» . A outra era a Cultura ( Paideia ), «de fisio- nomia extremamente agradável, pose digna e manto traçado a preceito» . (§§ 5 -6). Seguem -se os discursos de cada uma das personagens, que fazem lembrar o agôn («luta», «disputa») das Nuvens de Aristófanes, travado entre a Tese Justa e a Tese Injusta. A fala da Escultura, mais curta (§§ 7-8), contém, no entanto, elementos biográficos (explícitos e implícitos) de certa impor- tância. Começa por se referir à tradição profissional da família do jovem, cujo avô materno e dois tios, também maternos, eram escultores de mérito. A seguir, enumera as vantagens da profissão: comida farta, ombros fortes e, sobretudo, uma vida particular ao abrigo de invejas e intrigas, em vez de (como, de resto, veio a suceder – daí também o valor biográfico da informação) viagens por países longínquos, afastado da pátria e dos amigos. De resto, a História está cheia de exemplos de grandes escultores (Fídias, Policlito, Míron, Praxíteles), cujo nome é imortal e que são reverenciados juntamente com as estátuas dos deuses por eles criadas. O discurso da Cultura (§§ 9 -13) possui todos os ingre- dientes necessários à vitória (além das informações biográficas que recolhemos das suas «profecias»... já realizadas). Vejamos alguns passos. «Meu filho: eu sou a Cultura, entidade que já te é familiar e conhecida, muito embora ainda não me tenhas experimentado completamente.» «Quanto aos grandes benefícios que te proporcionará o ofício de escultor, já esta aqui os enumerou: não passarás dum operário que mata o corpo com trabalho e nele depões toda a esperança da sua vida, votado ao anonimato e ganhando um salário magro e vil, de baixo nível intelec- tual, socialmente isolado, incapaz de defender os amigos ou de impor respeito aos inimigos, de fazer inveja aos teus concidadãos. Apenas isto: um operário, um de entre a turba, prostrado aos pés dos poderosos, 14 servidor humilde dos bem-falantes, levando uma vida de lebre, presa do mais forte. E mesmo que viesses a ser um outro Fídias ou um Policlito, mesmo que criasses muitas obras-primas, seria apenas a obra de arte aquilo que toda a gente louvaria, e ninguém de bom senso, entre os que a contemplassem, ambicionaria ser como tu. Sim: por muito hábil que sejas, não passarás dum artesão, dum trabalhador manual.» Se, porém, me deres ouvidos, antes de mais revelar-te-ei as nu- merosas obras dos antigos, falar-te-ei dos seus feitos admiráveis e dos seus escritos, tornar-te-ei um perito em, por assim dizer, todas as ciências. E quanto ao teu espírito – que é, afinal, o que mais importa –, exorná-lo-ei com as mais variadas e belas virtudes: sabedoria, justiça, piedade, doçura, benevolência, inteligência, fortaleza, amor do Belo e paixão do Sublime. Sim, que tais virtudes é que constituem verdadeiramente as incorruptíveis jóias da alma... «Tu, agora pobre, tu, o filho do Zé -Ninguém, tu, que ainda há pouco havias enveredado por um ofício tão ignóbil, dentro em breve serás admirado e invejado por toda a gente, cumulado de honrarias e lou- vores, ilustre por tua alta formação, estimado das elites de sangue e de dinheiro; usarás um traje como este (e apontava -me o seu, que era realmente magnífico) e gozarás de merecido prestígio e distinção. E sempre que saias da tua terra, vás para onde fores, não serás, lá fora, um obscuro desconhecido: impor -te -ei tal marca, que, ao ver -te, um qualquer, dando de cotovelo ao vizinho, apontar -te -á com o dedo, dizendo: “É este, o tal”...» O final do discurso (§ 13) constitui um autêntico «fecho» elaborado segundo as leis da retórica. Depois de, no parágrafo anterior, ter mencionado os exemplos de Demóstenes (filho dum fabricante de armas), de Ésquines (cuja mãe era tocadora de pandeireta) e de Sócrates (filho de escultor), lança o ataque final: «Caso desprezes o exemplo de tão ilustres homens, seus feitos gloriosos e escritos veneráveis, presença imponente, honra, glória e louvores, supremacia, poder e dignidades, fama literária e o apreço devido à inteligência – então passarás a usar uma túnica reles e encardida, ganharás um aspecto servil, agarrado a alavancas, cinzéis, escopros e goivas, completamente inclinado sobre o trabalho, rastejante e rastei- ro, humilde em todas as acepções da palavra, sem nunca levantar a cabeça, sem um único pensamento digno dum homem livre, mas antes continuamente preocupado com a ideia de a obra te sair harmoniosa e apresentável – enquanto a respeito de ti próprio, da maneira de te 15 tornares harmonioso e bem dotado, não te importas absolutamente nada; pelo contrário, ficarás mais vil que as mesma pedras.» É pena que esta autobiografia não tivesse sido escrita uns vinte (ou trinta) anos mais tarde. Em todo o caso, Luciano, noutras obras, fornece-nos mais algumas indicações. Assim, pela Dupla Acusação (§ 27), escrita pouco depois do Sonho , sabemos que Luciano, entregue de alma e coração à retórica e à sofística, iniciara a sua actividade de advogado em várias cidades da Ásia Menor (Segundo a Suda, «começou por ser advogado em Antioquia»). Da Ásia Menor, passa para a Grécia, e daí para a Itália, mas é sobretudo na Gália que obtém glória e fortuna. Uma dúzia de anos depois de ter saído da sua terra natal, regressa a casa, mas por pouco tempo. Decide fi xar-se com a família em Atenas, onde permanece por cerca de vinte anos (c. 165-185 d. C.). A Dupla Acusação deve datar dos primeiros anos da sua estada na capital da cultura. Amadurecido pelas viagens e pela experiência da vida, materialmente afortunado, este homem de cerca de quarenta anos (v. § 32) cedo se far- ta da actividade judiciária, da retórica e da sofística, para se entregar a uma actividade literária que, não sendo nova, ele, no entanto, reforma de maneira radical: trata-se do diálogo fi losófico, mas agora entendido e elaborado segundo princí- pios originais. De facto, Luciano aligeira substancialmente o majestoso diálogo fi losófico que vinha dos tempos de Platão, e acrescenta-lhe um aspecto dramático, orientado no sentido da sátira – o que significa reunir no «novo género» dois géneros diferentes e até muito diversos: o diálogo fi losófico e a comédia. E realmente foram sobretudo as obras em forma de diálogo que deram fama a Luciano. É nelas que melhor se expande a sua crítica panfletária e corrosiva, que atinge – literalmente – tudo e todos: os deuses e os heróis, a religião e as religiões, a fi losofia e as suas variadíssimas seitas, a moral convencional, a sociedade e os seus pilares mais destacados, os homens e as suas vaidades, as sua superstições irracionais e o aproveitamento que delas fazem os espertos... enfim, podemos dizer que em Luciano conflui o que de mais violento havia na comédia. Um certo epicurismo prático e um cinismo teórico afinam e refinam o processo. Aos quarenta e poucos anos, Luciano adopta uma atitude fun- damentalmente céptica, que, sobretudo, se insurge contra todo 16 o dogmatismo metafísico e filosófico em geral. A este respeito, recomenda-se vivamente a leitura do Hermotimo (ou As Seitas 2 ), obra dum niilismo verdadeiramente perturbador: dada a varie- dade das correntes filosóficas, e ainda devido ao tempo e esforço necessários a uma séria apreciação de cada uma, o homem, por mais que faça, não pode atingir a verdade . Basta citar uma frase, que, não sendo de modo nenhum a mais importante deste diálogo, é, no entanto, verdadeiramente lapidar: «As pessoas que se dedicam à filosofia lutam pela sombra dum burro» (§ 71). E, já agora, aqui fica o fecho, em que Hermotimo, finalmente convencido pelos argu- mentos de Licino (ou seja, Luciano), afirma: «Quanto aos filósofos, se por acaso, e apesar das minhas precauções, topar com algum no meu caminho, evitá-lo-ei, fugirei dele como dum cão raivoso» . (§ 86) Cerca de vinte anos depois de chegar a Atenas, Luciano decide recomeçar a viajar, mas nada será como antigamente: já na recta final da existência, talvez em situação financeira menos próspera, e sem dúvida desiludido com o deteriorado clima cultural de Atenas, fi xa-se no Egipto, onde aceita (ou consegue?) um lugar de funcionário público, aliás compatível com a sua formação e importância social. Ele próprio nos informa ( Apologia dos Assalariados , § 12) de que a sua situação não se compara à dos miseráveis funcionários (por exemplo: professores), que afinal não passam de escravos. E continua: « A minha condição, meu caro amigo 3 , é completamente diferente. Na vida privada, conservei toda a minha liberdade; publicamente, exerço uma porção da autoridade suprema, que administro em conjunto com o procurador ... Tenho sob a minha responsabilidade uma parte considerável da província do Egipto, cabe-me instruir os processos, determinar a ordem pela qual devem dar entrada, manter em dia os registos exactos de tudo o que se diz e faz, ... executar integralmente os decretos do Imperador ... E além do mais, o meu vencimento não se parece nada com o dum simples particular, mas é digno dum rei, e o seu montante, longe de ser módico, ascende a uma soma considerável. A tudo isto acrescenta o facto de eu não me alimentar de esperanças modestas, pois é possível que ainda obtenha a título pleno a prefeitura ou qualquer outra função verdadeiramente real. » Esperanças nada modestas, provavelmente bem fundadas... Só que, por motivos que ignoramos, tudo se desfez em vento. 2 «Clássicos Inquérito», nº 16. 3 Esta obra, de forma epistolar, é dirigida a um tal Sabino, amigo de Luciano. EU, LÚCIO – MEMÓRIAS DE UM BURRO